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Os poemas possíveis
Poesia, 1966




Capa da edição portuguesa de Os poemas possíveis


























"Aparece esta edição de Os Poemas Possíveis dezasseis anos depois da primeira. Não é assim tanto, comparando com os dezasseis séculos que sinto ter juntado à minha idade de então. Pode-se perguntar se estes versos (palavra hoje pouco usada, mas competente para o caso) merece segunda oportunidade, ou se a não ficaram devendo a porventura mais cabais demonstrações do autor no território da ficção. Se, enfim, estaremos observando um simples e nada raro fenómeno de aproveitamento editorial, mera estratégia daquilo a que costuma chamar-se política de autores, ou se, pelo contrário, foi a constante poética do trabalho deste que legitimou a ressuscitação do livro, porque nele teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessões que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente invariável, de um corpo literário em mudança. Aceitemos a última hipótese, única que poderá tornar plausível, primeiro, e justificar, depois, este regresso poético.

Poesia datada? Sem dúvida. Toda a criação cultural há-de ter logo a sua data, a que lhe é imposta pelo tempo que a produz. Mas outras datas leva sempre também, anteriores, as dos materiais herdados- quantas vezes dominantes-, e, de longe em longe, aquela impalpável data ainda por vir, aquele sentir, aquele ver e experimentar só futuro ainda. Porém, essas entrevisões são coisa apenas para génios, e, obviamente, não é deles que se trata aqui.

Poesia do dia passado, da hora tarda, poesia não futuramente. E contra isto não haveria remédio. Salvo tentar trazê-la até ao seu autor, hoje, por cima de dezasseis anos e dezasseis séculos. Assim foi feito, e esta edição aparece não só revista, mas emendada também. Quase tudo nela é dito de maneira diferente, diferente é muito do que por outra maneira se diz, e não faltaram ocasiões para contrariar radicalmente o que antes fora escrito. Mas nenhum poema foi retirado, nenhum acrescentado. É então outro livro? É ainda o mesmo? Eu diria (e com este remate me dou por explicado) que o romancista de hoje decidiu raspar com unha seca e irónica o poeta de ontem, lacrimal às vezes. Ou, para usar expressões menos metafóricas, procurou tornar Os Poemas Possíveis possíveis outra vez. Ao menos."


[José Saramago, Janeiro de 1982, nota publicada na 2a. edição da obra em 1982]

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"Os Poemas Possíveis ( de que consideramos apenas esta segunda edição, revista e emendada pelo autor, que anota que «o romancista de hoje decidiu raspar com unha seca e irónica o poeta de ontem», confinado deste modo a um passado revolto a sua actividade poemática) apresenta-se como uma colectânea cuidadosamente estruturada, em cinco partes, a primeira e a última relativamente longas (48 e 67 poemas, respectivamente) e as três intermédias mais curtas (33 poemas no seu conjunto). Da primeira, Até ao sabugo, se poderá dizer integra uma temática vária, dominada por uma atitude simultaneamente deceptiva e pertinaz: «Agora, inventar arte e maneira/ de juntar o acaso e a certeza, / Leve nisso, ou não a vida inteira. // Assim como quem rói as unhas rentes», 19. O sofrimento humano, o desengano, toda uma constelação temática da impossibilidade vão articular-se intimamente com a problemática liminar do encontro da arte, da invenção do sentido poético, do lampejo fugaz que pode fazer vibrar liricamente a palavra: «Há-de haver uma cor por descobrir, / Um juntar de palavras escondido, / Há-de haver uma chave para abrir / A porta deste muro desmedido», 51. O sentido poético é entrevisto como homólogo do sentido humano na exacta medida em que o valor da existência se afere pela noção de criatividade que a conduz, ao contrapor, no poema Balança, «o desespero / De prender violento ou descuidar / A sombra que (lhe) vai medindo os dias» à valorização absoluta que assim formula: «o gosto de passar entre estrela, / A certeza de que só teria / Se viesses pesar-me, poesia», 24. A noção de uma sensibilidade exacerbada e insatisfeita é angustiante («anda um corpo afogado no meu sangue», 53) e entendida na materialidade dos seus limites («Não vai o pensamento aonde o corpo / Não vai», 35); só a magia do verbo confere ao homem possibilidade de ultrapassar , justificando-o: «As palavras são novas: nascem quando / No ar as projectamos em cristais / De macias ou duras ressonâncias. // Somos iguais aos deuses, inventando / Na solidão do mundo estes sinais / Como pontes que arcam as distâncias», 55. A última parte deste livro, Nesta esquina do tempo, retoma a temática enunciada mas encaminha-a para uma expressividade que se condensa em torno de dois eixos semânticos fundamentais, por vezes indissociáveis: o amor e o mar. Se o amor se aproxima, na arte poética de José Saramago, dessa fulgurância mágica que determina o encontro da palavra, o mar é elemento fundamental da paisagem, formulação delineada do mundo que é uma das constantes da obra. Essa paisagem aparece já exemplarmente no poema da primeira parte, «Retrato do poeta quando jovem», com as suas componentes regulares de luz, água, imperceptível movimento ou fluxo indizível do tempo (o nascer do sol, um rio, um bater de remos); na relação com o amor e o mar, a sensibilidade musical (ou talvez melhor: rítmica) de José Saramago resolve a oposição paronímica de um inefável expressivo, de uma impossibilidade de dizer tudo (e tudo melhor ) diz e que vai coincidir com outro motivo central da sua poética: o silêncio. O elogio do silêncio vai aliás desembocar numa figuração de tipo simbolista que se resolve verbalmente pelo apontamento da mais pura materialidade da escrita: «Um verso que não diga por palavras / Ou se palavras tem, que nada exprimam: / Uma linha no ar, um gesto breve / Que, num silêncio fundo, me resuma / A vontade que, a mão que escreve», 165.

«Poema a Boca Fechada», «Mitologia» e «O Amor dos Outros», as três partes intermédias de Os Poemas Possíveis, são mais concentradas de sentido e mais regulares do ponto de vista versificatório e estrófico. Aliás, em toda a poesia de Saramago domina o metro decassílabo, sendo os agrupamentos estróficos variados mas hesitando entre o poema de meia página (quase sempre utilizando combinatórias clássicas) e o breve recorte epigramático- um certo derrame lírico ou descritivo e a contenção irónica ou lapidar. Enquanto Poema a Boca Fechada reúne textos de mais decidida intervenção social (com destaque para «Fala do Velho do Restelo ao Astronauta»), Mitologia congrega motivos da tradição pagã, cristã e genericamente ocidental; a nosso ver, porém, está em «O Amor dos Outros», a quarta parte desse livro, algo melhor que jamais em poesia lírica José Saramago produziu, desde os poemas de D. João à série de Romeu e Julieta, magnificamente finalizada em West Side Story: «Os jardins de Verona redivididos / No cimento cinzento desta era: / Um recado passado a outra mão, / Uma nova experiência, outra espera».


[SEIXO, Maria Alzira. O Essencial Sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p.8-10]