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História para crianças


Se não escrevi o livro definitivo que tornará a literatura portuguesa, enfim, uma coisa a sério, foi só porque ainda não tive tempo. Isto é o que me diz o meu amigo Ricardo, e di-lo com tal convicção, que muito céptico seria eu se não acreditasse sob palavra. Ora, na pequena roda dos meus leitores é sabido que eu sou o homem mais a jeito de se deixar convencer pela força das alheias certezas. Quanto me dariam para duvidar, se estes homens afirmam tanto e tão frontalmente, com os olhos a direito e a mão que não treme? Digo "sim senhor", se a intimidade não dá para mais, e se é o caso de dar, como acontece com o meu amigo Ricardo, acho-me tão eloquente que construo uma frase de oito palavras "então vê lá isso cá fico à espera". 

Aliás, para ser inteiramente sincero, até sei donde me vem esta universal compreensão que em particular acredita na obra definitiva do Ricardo. Conhecemos sempre muito mais dos outros quando já nos passaram pela porta da rua ilusões parecidas. Lembramo-nos de que estivemos sentados no degrau, a ver passar o mundo, e ver chegar-se uma ideia pelo nosso lado, percebendo-se logo que aquilo era connosco por sinais que não enganam - e depois, vá lá saber-se, ou hesitámos, ou  a ideia perdeu as pernas, continuámos sentados, a cuspir a saliva da decepção e a inventar a desculpa que daremos a nós próprios mais tarde. Comigo o caso não foi assim tão grave, mas deu para imaginar que seria capaz de escrever um dia a mais bela história para crianças, uma história muito simples, que, manifestamente, não se tornariam adultas se não lhe recolhessem o sumo. 

Ao contrário do que se pense, não venho hoje escrever essa história. Limito-me a contá-la, a dizer o que nela se passaria, coisa que (não esqueçamos) não é o mesmo que escrevê-la. Escrever é obra doutra perfeição, é fazer aquilo que diz o meu amigo Ricardo - e daí, como já disse, tirei eu o sentido, também por falta de tempo. Mas vamos ao conto. 

Na história que eu escreveria havia uma aldeia. Não se temam, porém aqueles que fora das cidades não concebem histórias nem sequer infantis: o meu herói menino tem as suas aventuras aprazadas fora da sossegada terra onde vivem os pais, suponho que uma irmã, talvez um resto de avós, e uma parentela misturada de que não há notícia. Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio, e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu. Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde aventurara sozinho. Dali para adiante, começava o planeta Marte, efeito literário de que ele não tem responsabilidade, mas com que a liberdade do autor acha poder hoje aconchegar a frase. Dali para adiante, para o nosso menino, será só uma pergunta sem literatura: "vou ou não vou?". E foi. 

O rio fazia um desvio grande, afastava-se, e de rio ele estava já um pouco farto, tanto que o via desde que nascera. Resolveu portanto cortar a direito pelos campos, entre extensos olivais, ladeando misteriosas sebes cobertas de campainhas bancas, e outras vezes metendo por bosques de altos freixos onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule sangrado de fresco como uma veia branca verde. Ó que feliz ia o menino. Andou, andou, foram rareando as árvores, e agora havia uma charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma insólita colina redonda como uma tigela voltada. 

Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá em cima, que viu ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino. Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longe estava. Não importa. Desce o menino a montanha, atravessa o mundo todo, chega ao grande rio Nilo, no côncavo das mãos recolhe quanto de água lá cabia, volto o mundo a atravessar; pela vertente se arrasta, três gotas que lá chegaram, bebeu-as a flor sedenta. Vinte e seis cá e lá, cem mil viagens à lua, o sangue nos pés descalços, mas a flor aprumada já dava cheiro no ar, e como se fosse um carvalho deitava sombra no chão. 

O menino adormeceu debaixo da flor. Passaram as horas, e os pais, como é costume nesses casos, começaram a afligir-se muito. Saiu toda a família e mais vizinhos à busca do menino perdido. E não o acharam. Correram tudo, já em lágrimas tantas, e era quase sol-pôr quando levantaram os olhos e viram ao longe uma flor enorme e ninguém se lembrava que estivesse ali. Foram todos de carreira,  subiram a colina e deram com o menino adormecido. Sobre ele, resguardando-o do fresco da tarde, estava uma grande pétala perfumada, com todas as cores do arco-íris. 

Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre. Quando depois passava nas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que seu tamanho e do que todos os tamanhos. E essa é a moral da história.


In: A bagagem do viajante.