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A morte de Julião *

Julião tinha medo, um medo mortal.

Estava sòzinho no seu quarto, sentado perto da janela por onde entrava a luz antipática do crepúsculo da cidade. Pousava as mãos sobre os joelhos e ali as abandonara. As paredes do quarto eram brancas à luz do dia, brancas como um véu de noivado, brancas como uma pilha de sal ou, mais exactamente, brancas como umas paredes brancas. (Será forçoso que, em literatura, qualquer coisa seja como outra coisa?). Mas as paredes, agora, estavam sujas da luz do crepúsculo. Já não eram brancas, mas azuis-cinzentas, neste momento mais azuis-cinzentas do que há pouco. Numa delas, dois retratos: um de homem, outro de mulher – os pais de Julião. Haviam morrido velhos, mas, ali, estavam novos, tal como se tivessem ainda que vivem muitos anos.

Quando Julião se estendia na cama, ficavam-lhe por cima, e ele nunca passava sem perguntar a si próprio por que motivo não envelheciam os retratos. E sorria da sua inteligência ao encontrar a resposta, sempre a mesma: os retratos eram coisas, não eram seres. É certo que as coisas e os seres envelhecem igualmente, mas as primeiras continuam sendo coisas e os seres deixam de ser o que eram. Há até quem diga que passam a ser coisas.

Na rua rolava um turbilhão de seres e de coisas. E, ou fosse por bilidade [sic] de prestidigitação, os seres moviam-se como coisas e as coisas como seres. Os pensamentos no cérebro de Julião confundiam-se. Da janela via um canto da rua onde afluiam e se aglomeravam automóveis e «eléctricos» e gente. Ou a aglomeração seria de gente, «eléctricos» e automóveis? Estas acrobacias mentais fazia-as Julião para espantar o medo. Ah, mas o medo não é uma coisa que se espante assim! E muito menos quando esse medo é o da morte. Não ficou dito atrás, de facto, mas o certo é que Julião tinha medo da morte. E é por isto que o medo era mortal.

A luz ia fugindo pouco a pouco e outro medo se apossou de Julião: o de morrer quando ela desaparecesse por completo. Não, morrer às escuras, não! E nem a morte deve significar trevas, a morte deve ser um esplendor vivíssimo, deslumbrante, talvez com alguma figura ao fundo, como nas grandes aparições celestiais em que são férteis as vidas dos santos. Mas Julião não era santo. Como quer que fosse, às escuras, nunca. Tentou erguer-se para rodar o interruptor da corrente eléctrica, mas recaíu na cadeira. Concentrou-se: teria bebido demasiado? Não se lembrava. E, de resto, se a morte era um resplendor, iluminaria o quarto quando chegasse e não seria precisa a eléctricidade.

Um pormenor apenas preocupava Julião: depois de morto veria o resplendor, o facho, a aurora? Ou exactamente a intensidade da luz o cegaria, deixando-o imerso nas trevas, não por estar morto, mas por estar cego? Esfregou os olhos. Na parede, a mãe continuava ao lado do pai. Não estava, portanto, nem morto nem cego: estava sentado e vivo. O quarto já não era azul-cinza, mas azul negro; a cama de ferro, um poço onde seria bom dormir.

Mas Julião não tinha sono. Tinha medo. Chegara havia duas horas de um enterro. O morto já o estava há quinze dias e o seu aspecto era abominável. Até esse dia, a morte fora para Julião uma circunstância penosa mas decente. Os cadáveres que vira iam para debaixo da terra ainda com a aparência de vivos. E na memória de Julião ficavam para sempre com a serenidade das suas faces compostas. Mas aquele, não. Aquele aterrava. Aquele estabelecia um estado intermédio entre as recordações de Julião e os ossos limpos dos esqueletos de estudo. Por isso, Julião tinha medo, mas de morrer. Talvez até nem mesmo de morrer, mas de estar morto quinze dias.

Filosofou em voz baixa: «Para quê lutas, amores, ódios, despeitos, guerras? Tudo acaba em estar morto quinze dias e o pior castigo seria ressuscitar ao fim desse tempo.» Calou-se abruptamente com a nítida consciência de que dizia tolices. Não se está morto quinze dias; está-se morto a eternidade. Não é verdade, pai? Não é verdade, mãe? Olhou para os retratos. Já não os via. A escuridão preenchia por completo o vazio do quarto.

Julião sentia-se como uma pedra dentro de um bloco de gêlo. Moveu os ombros e ouviu a escuridão a estalar à sua volta. Ou seria a cadeira? Moveu-se outra vez. Era a cadeira, sem dúvida. E, que diabo, a escuridão não estala. «Memento homo...», teriam sido estas as palavras que o padre pronunciara no cemitério? Talvez outras. Latim, em todo o caso. E, a propósito, por que se falará em latim, uma língua que nem os vivos nem os mortos entendem? Ah, sim, é a língua que Deus compreende. Mas, então, Deus não será poliglota?

Foi neste momento que a escuridão estalou. Houve mesmo um crepitar. Pela janela entrou um foco imenso, o quarto ficou branco como se dia fosse. Era luz, muita luz, grande luz. «É a morte», pensou Julião. E ficou radiante porque acertara: no centro do foco aparecia uma figura de mulher. Ou seria uma criança? Ah, Julião preferia uma criança. Sim, a morte era uma criança que sempre pedia mais. Pedia-o agora a ele. Abriu a janela. O resplendor era, neste momento, maior, mais alto, mais largo, mais todas as dimensões!... Num pulo, Julião galgou o parapeito.

O filho do vizinho do prédio fronteiro queimava fogo de artifício...


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* Publicado pela primeira vez na revista Ver e crer, n.º 39, Julho de 1948