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A difícil conversa

O progresso, dizia-me aquele amigo entusiasta, é o melhor que há. Estás, por exemplo, em Lisboa, e queres fazer chegar um recado a alguém que vive em São Paulo, Brasil. Se fosse aqui há duzentos anos terias de escrever trabalhosamente uma carta que atravessaria o Atlântico num barco à vela, metida em escuro porão, com risco de naufrágio, e então se perderia o negócio, ou a amada desesperaria por falta de notícias. Hoje é diferente: pairam na atmosfera uns mágicos objetos, chamados satélites, de cujo funcionamento não entendes, mas que por ares e ventos te transportam as palavras, entre telefone e telefone, em poucos minutos ficaste rico de dólares ou reforçado de sentimentos. E se, pela extensão do discurso ou sua complexidade, dúvidas que haja, embaraços na receção, tens ao teu alcance esse outro invento, o telex, que alinhará no destino, e por claro, ordens, projetos e afetos, como se os teus próprios dedos, invisíveis, fossem datilografar a mensagem a oito mil quilómetros de distância. Graças ao progresso, remata o meu amigo, a comunicação é fácil, imediata, instantânea.

Será? A pergunta exprime algum ceticismo, leva aquele trejeito de lábios de quem, por já ter vivido tanto, está de entusiasmo arrefecido, o que, apresso-me a acrescentar, não significa uma descrença radical nas virtudes da comunicação, apenas consciência do relativismo de todas as coisas, a começar por essa. Vejamos: que tem a dizer, com utilidade suficiente, um escritor português aos leitores brasileiros, separados, ele e eles, por um mar oceano e por mil acrescentadas dificuldades de navegação que não encontram compensação na comum língua e no seu aparente manejo comum? E quando aqui se escreve leitor brasileiro, que leitor é esse e de que Brasil? E se o escritor português falar do seu próprio país, da vida do povo a que pertence, da cultura que herdou e deseja ajudar, até que ponto interessa tudo isso a potenciais leitores que vivem num certo lugar do Brasil, pertencem a uma certa camada social e possuem um certo grau de instrução e educação? Mais ainda: tem o tal escritor português o direito de dirigir-se a esses leitores, se deles tão pouco ou mesmo nada sabe, como nada ou pouquíssimo nada da vida profunda da terra brasileira, provavelmente insondável para os seus próprios naturais? Porque, em verdade, que conhece do Brasil o escritor português, este? Esteve em São Paulo, para onde o recado vai, no Rio de Janeiro, em Santos e Campinas, em Belo Horizonte e Ouro Preto, a volta ao mundo. E a quem conhece? A outros escritores, a jornalistas, a professores universitários. Porém, não conhece o povo brasileiro, nem sequer a pequena parte dele que compra revistas e as folheia, que compra livros e os estima. Em Portugal, mais ou menos, o escritor conhece os leitores que tem. Dos leitores que no Brasil tiver ignora tudo.

Esta conversa é, pois, difícil. Porque uma outra questão não pode ser ocultada: para muitos brasileiros Portugal é um país do passado, e os portugueses, mesmo de novíssima geração, são todos bisavós e trisavós, talvez enternecedores, mas a quem não se deve levar muito a sério, porque com a idade vão treslendo e não compreendem o mundo em que ainda vivem. Claro que não se levam às costas oito séculos sem que os joelhos verguem um pouco, mas essa ideia de um Portugal reserva histórica e museu da língua não favorece o encontro nem o diálogo, numa palavra, não serve a comunicação que a tecnologia totalizou e globalizou. Quer dizer, não é por muito comunicar que melhor se comunica, ou então, diz-me o que comunicaste e eu te direi se vale a pena.

Do futuro destas crónicas serão julgadores e sentenciadores os que as lerem, mais ainda do que eu que as escrevo e de quem me convidou a escrevê-las. Convite e aceitação dele são, de certa maneira, questões de patrão e empregado, primeiro e segundo tempos de uma ação. O que realmente conta e importa é o que virá depois: o leitor e o seu juízo. O autor destas linhas não se decidiria a escrever numa publicação brasileira por motivos apenas materiais ou, se posso autorizar-me a palavra, de prestígio. De vozes que pregaram no deserto encheu-se a transbordar a história das relações entre Brasil e Portugal. Não é possível reprimir um sentimento de melancolia quando damos balanço aos mal-entendidos, aos equívocos, às atitudes intempestivas, às incongruências, e também aos oportunismos, aos truques e habilidades com que, de um lado e doutro, se tem tecido a capa rota dessas relações.

Mas também não se pode esquecer o que ainda existe de fé verdadeira, de amizade sem portas falsas entre tantos portugueses e brasileiros que conservam a esperança de uma fraternidade assente no conhecimento leal, na mútua compreensão, na vontade sincera de viver juntos vivendo cada um em sua casa. É a esse conhecimento, a essa compreensão, a essa vontade que estas crónicas querem servir. Pelo tempo e mérito da sua utilidade. Nem um segundo mais, nem uma palavra a mais.


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Texto escrito em 13 de março de 1986 para a revista Status