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Viagem a Portugal
Viagem (Guia), 1980



Edição brasileira de Viagem a Portugal.
Capa de Hélio de Almeida sobre relevo de Arthur Luiz Piza






























Em Viagem a Portugal, o pacto de Saramago com a língua se materializa com tanta clareza que chega a parecer um destino - é como se as coisas e as pessoas estivessem estado à espera de seu escritor. Um milhão de viajantes viram os rios, as encostas e as florestas que Saramago viu. Entraram nos mesmos castelos e igrejas. Pediram informação àquele pastor, à fiandeira e ao velho da encruzilhada. Todos deram pasto à vista e à imaginação. Nenhum deles, entretanto, teve como levar a viagem para casa, refazê-la por escrito e escolher que iria partilhá-la infinitamente.

Conhecemos, neste livro, que nome se dá às coisas em Portugal, qual é a comida que vai para a mesa, quem pintou o teto daquela capelinha, quando é que chove, de que cor são os olhinhos de Nossa Senhora da Cabeça, o que aconteceu com as flores das amendoeiras que o rei mouro mandou plantar para a sua princesa nórdica, quanto custa passar o tempo nas ruas de Serpa, até que ponto são rápidas as águas do Pulo do Lobo, de que modo se conserva a seriedade perante o são Sebastião sorridente e orelhudo de Cidadelhe, por que morreu Inês, a amante de Pedro, o Cruel, o Cru, o Filho-Inimigo, o Tartamudo, o Dançarino, o Vingativo, o Até-Ao-Fim-do-Mundo-Apaixonado.

[Nota da Companhia das Letras]

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Todas as aldeias de Portugal


por Tina Oliveira

Leitores de Saramago que, de algum modo, já encontraram Portugal em sua obra pode conhecer o país tendo o próprio escritor como guia. É só iniciar a aventura inspirados no seu Viagem a Portugal, lançado em 1990, numa versão com fotografias, e depois em 1995, num só texto. Saramago ensina como fugir dos roteiros tradicionais de viagens e conhecer a fundo a sua terra. Viajar provavelmente é uma das caras possíveis da felicidade, diz na apresentação.Então, recomenda: "entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva".

Pois comecemos pelo norte de Portugal, região, em geral, ignorada pelos estrangeiros na hora de fazer o roteiro das férias. Ali, na fronteira com a Galícia espanhola, com o rio Minho separando os dois países, os viajantes podem visitar pequenas cidades como Valença, Monção e Melgaço, que mais parecem pequenas jóias perdidas no tempo, a exibir o seu passado de defesa contra a nação vizinha e os seus muros e igrejas medievais. Monção, em pleno século XXI, vive das memórias de uma heroína chamada Deuladeu Martins, que, em 1368, ao ver a cidade sitiada pelos espanhóis e sem comida, mandou amassar e cozer o que restava de farinha e lançar biscoitos muralha abaixo, numa tentativa de alardear a prosperidade da cidade e, assim, convencer o inimigo da inutilidade do cerco.

Ao descer pelas margens do rio, em direção ao sul, os viajantes podem assistir ao seu encontro com o oceano Atlântico, na altura da cidade de Caminha. Um pouco mais abaixo, está Viana do Castelo, que chamou atenção de Saramago pela enorme quantidade de portas e janelas manuelinas, "algumas simples, outras de lavor apurado, tanto com justiça se pode dizer que Viana põe à vista do viajante o que tem de melhor". Na praça da República, o viajante pode sentar ao ar livre para se deliciar com algum dos famosos pastéis portugueses e apreciar a beleza das construções quinhentistas e a tranquilidade de uma cidade que tenta se modernizar, mas continua sendo um pequeno povoado.

Mais ao norte, está a famosa cidade de Braga, chamada pelos romanos de Braga Augusta, antiga capital religiosa de Portugal. Ali se pode ver uma quantidade enorme de igrejas, de diferentes épocas e estilos e assistir a uma das festas mais populares e concorridas do país, que acontece na cidade durante a Semana Santa. Se o tempo é curto, Saramago aconselha os viajantes a se restringir à catedral da Sé, cuja construção se iniciou no século XII. Desde então, sofreu muitas transformações. Tudo na tentativa, segundo dizem as más-línguas mencionadas pelo escritor, de não ficar atrás da magnificência da catedral de Santiago de Compostela, da então inimiga Espanha.

Em Barcelos, Saramago faz loas à comida de um restaurante chamado Arantes, onde comeu papas de sarrabulho, um prato feito com carne de porco, seu sangue e muitos condimentos: "Que há-de o viajante dizer das papas de sarrabulho senão que nunca outro melhor manjar comeu nem espera vir a comer, porque não é possível repetir a inventiva humana esta maravilhosa e rústica comida, esta macieza, esta substância, estes numerosos sabores combinados, todos vindos do porco e sublimados nesta malga quente que alimenta o corpo e consola a alma". Com tal descrição, será difícil resistir. Barcelos é famosa por ser o berço do galo que se tornou símbolo de Portugal. Conta a lenda que, em tempos imemoriais, houve na cidade um crime, cujo autor não era descoberto. Até que as suspeitas caíram sobre um galego, que, jurando inocência, antes de ir à forca, pediu ir à presença do juiz. Chegando ali, a autoridade comia um galo assado e ouviu o condenado dizer que, em prova da sua inocência, o animal cantaria na hora em que ele fosse enforcado - dito e feito.

Meia hora mais ao norte, está a segunda cidade, o Porto, à beira do rio Douro. Descendo as escadarias que vão dar ao bairro da Ribeira, o mais típico da cidade, com suas ruelas e tascas, Saramago se sentiu como Radamés depois da batalha contra os etíopes - triunfal. Uma vez lá embaixo, porém, o escritor deparou com "ruas húmidas e viscosas, cheiros de fossa, entradas negras de casa". Trata-se de um local pobre, mas, apesar de tudo, é o que dá cara à cidade, muito mais que os bairros de elite à beira-mar ou os centros comerciais modernos. No Porto, há o contraste entre a escuridão das ruas sombrias e casas cor de terra, tão fascinantes tudo isto como ao anoitecer as luzes que se vão acendendo nas encostas, cidade que junta com um rio que chamam Doiro".

Indo em direção a Lisboa, o viajante tem boas opções de parada pelo caminho. Para começar, Coimbra, que é famosa pela universidade, uma das mais antigas da Europa, mas com muito mais a oferecer. Somente andar pelas ruas da cidade já faria da visita uma aprazível estada, apesar das ladeiras que mantêm turistas e moradores num sobe-e-desce constante. Os edifícios antigos, as igrejas, as ruelas, onde se pode ouvir fado de qualidade à noite, tudo isso faz de Coimbra uma descoberta e tanto.

Saindo de Coimbra, na direção sul, está Óbidos, uma pitoresca cidadela entre muros com o risco de suscitar opiniões contrárias, Saramago faz uma ressalva, a de que a cidade é florida demais, fazendo com o que branco das paredes das casas seja diminuído pelo colorido das flores, que abundam nas janelas e muros. Apesar disso, o escritor admite que a cidade merece todos os louvores pela sua beleza, que faz dela um cenário sempre pronto para ser fotografado. Muito diferente da beleza caótica de Lisboa.

Na capital lusa, não faltam monumentos, museus e locais importantes para visitar, todos devidamente indicados nos guias turísticos e nos folhetos de viagens. O que interessa para os viajantes a quem se dirige Saramago são as contradições e os mistérios lisboetas. Da Alfama, bairro com casas de fado e ruelas estreitas, ele diz ser um animal mitológico, quase impossível de ser entendido. Por isso mesmo, avisa aos viajantes que não caiam no erro do turista que vai, olha, tira fotografias, finge que entende e volta ao seu país dizendo que conheceu o que, na verdade, não chegou a conhecer.

O mesmo risco se corre no Alentejo, região pobre de Portugal, que se estende em direção ao sul, do rio Tejo ao Algarve. Pouco visitado pelos turistas estrangeiros, parece não oferecer atrações a serem descobertas. Mas é preciso ir a cidades como Évora e Marvão para entender por que os castelos, as amplas planícies de plantação, os olivais e a tranquilidade fazem o charme dessa região. Segundo Saramago, esta deve ser a filosofia de todo viajante: "É viagem o que está à vista e o que se esconde, é viagem o que se toca e o que se adivinha, é a viagem o estrondo das águas caindo e esta subtil dormência que envolve os montes". Além disso, o fim de uma viagem é sempre o começo de outra: "É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que já se viu, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite".


[Texto publicado na Revista Entrelivros, março de 2007].