+A +/- -A
Entrevista a Luís Ricardo Duarte

Polémico e convicto. José Saramago está de regresso com um novo romance, Caim, já a gerar controvérsia, como sucedeu com outros livros seus. Mas chocar não é o seu objectivo, nunca foi. Nem agora, nem quando publicou o Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Ao falar sobre os principais episódios do Antigo Testamento, o escritor apenas quis abordar um tema que há muito o inquieta: o jugo que Deus, ou quem o representa, exerce sobre a Humanidade, que se deixou escravizar pela sua própria criação, sem que com isso tenha evitado a guerra, o sofrimento e a miséria. Como explica nesta entrevista, Caim é o testemunho de alguém que, acima de tudo, defende "o valor do ser humano".

Fonte: Jornal de Letras




Jornal de Letras: Reagindo ao que disse na sessão de lançamento de Caim (que a Bíblia é um "manual de maus costumes"), o porta-voz da Conferência Episcopal portuguesa acusou-o de afronta, jacobina e sectária, aos católicos, depois do poeta José Tolentino Mendonça, na qualidade de director do Secretariado da Cultura da mesma entidade, haver observado que tem uma visão ingénua do Antigo Testamento, muito influenciada pela sua ideologia. Como comenta?

José Saramago: Com outra pergunta: a resposta deles também não é uma declaração marcada pela fé que dizem ter? Eu não tenho nada a ver com isso, mas acontece que eles me aconselham humildade, não sei se é bem esse o termo. Ora, essa palavra devia queimar a língua da Igreja, que se caracteriza por muitas coisas, incluindo uma tremenda falta de humildade. Porquê? Consideram-se detentores da verdade suprema, se é que existe tal coisa. Do alto desse orgulho permitem-se opinar sobre tudo, recomendar e ordenar pautas de comportamento aos fiéis. Arrogam-se o direito de usar esse poder sobre o comum dos mortais. E como sou uma pessoa, e acabo de publicar um livro, eles decidem opinar. Se for uma leitura ingénua, é a mesma que fizeram e ainda fazem milhões de pessoas que lêem a Bíblia tomando à letra o que lá está, provocando com isso a morte de uma enorme quantidade homens e mulheres. As guerras mais cruéis que se observaram até hoje foram provocadas pela religião. O que é estranhíssimo, porque se há um deus, não há dois, três ou quatro. Portanto, não é uma guerra entre deuses, mas um conflito que só existe na cabeça dos homens. Tudo em nome de alguém que nunca viram, com quem nunca se sentaram à mesa a tomar café.

Mas considera que é urgente questionar Deus e os seus fundamentos?

Não sei se é urgente. Eu sinto essa necessidade. Há pessoas que vivem perfeitamente com a fé que têm, e não tenho nada a ver com isso. Não me meto, apenas trato dos meus assuntos. Um deles é este. Olho para o mundo, para a história, para o que aconteceu, o que está acontecendo agora mesmo, para os conflitos religiosos entre cristianismo e islamismo, e escrevo.

Este livro não é um apelo à reflexão, um conselho que dá aos leitores?

Tenho um princípio sagrado desde que nasci: não dou conselhos, porque isso representa uma postura de autoridade que não se tem. Uma pessoa que dá um conselho em nome da sua própria experiência ou do que julga melhor está de certa maneira a colonizar o Outro. Até pode ser algo que venha a revelar-se útil, mas a questão é saber se temos o direito de o fazer. Deixemos as pessoas viver. Vão errar?, pois que errem, vão acertar?, estupendo. O que eu peço é que pensem e reflictam. Não digo: aqui está o Caim que vai mudar as vossas vidas.

É uma afirmação de que Deus é algo que diz respeito a todos, mesmo para os não crentes, tal é a sua influência na nossa sociedade?

Apenas digo que o mal maior não é o homem ter criado deus, é ter-se escravizado a ele depois de o criar. É incompreensível. E tudo se complicou quando surgiu uma instituição encarregada de gerir os seus supostos interesses. Surgiu o pecado, cuja invenção foi um golpe de génio. A partir desse momento, passa-se a controlar não tanto as almas, mas os corpos. Como escritor, sou eu que escolho os temas. Não vou, nem fui, nem nunca irei pedir autorização à Conferência Episcopal.

Internacional da bondade.

Nessa perspectiva, consegue entender por que razão o homem se deixou escravizar pela sua própria criação?

Tem a ver com uma grande raiz que é a morte. Se fôssemos imortais não teríamos inventado deus. Como não somos, foi nascendo na cabeça dos povos abandonados na terra estas criaturas de produção divina. Morremos. E rapidamente se pensou se não haveria outra vida, já que esta é tão má, tão curta, tão absurda. Ou que poderia haver um outro lugar onde fosse possível ser feliz. A partir daqui tudo é possível. Daí que o homem se escravize àqueles que dizem o que devemos pensar, fazer, sentir e até comer, com o jejum, o Ramadão e a proibição de comer carne à sexta. É uma rede que aprisiona até aquelas pessoas que não sendo crentes, como é o meu caso, não ignoram nem negam os valores do cristianismo. O ateu absoluto não existe.

Fazer uma leitura simbólica do Antigo Testamento pode ser perigoso?

Como se pode fazer uma leitura simbólica da ordem que deus dá a Abraão para matar o filho? Com que simbolismo se pode justificar isto? Esta ordem que, honra seja feita a deus, não terá de ser cumprida tem uma correspondência na outra ponta da Bíblia. No Novo Testamento, também deus condena o seu filho à morte, supostamente para salvar a Humanidade. Que deus é este que não tem poder para salvar a Humanidade se não sacrificando o seu filho?

Podemos ver neste Caim um contraponto a Evangelho Segundo Jesus Cristo, numa espécie de 'Bíblia segundo José Saramago'?

Não, até porque nunca o vi ou pensei assim. Num texto que escrevi para uma nova versão de As Sete Últimas Palavras de Cristo, de Joseph Haydn, salientei o lado humano de Jesus. E nas falas que ele dirige a deus há uma em que se refere ao túmulo, do qual parece que ressuscita dentro de dois dias. Aí, a preocupação dele é como sairá do túmulo. "Já se notarão nas minhas mãos e na minha cara as marcas da podridão?". É a preocupação de um homem, que não era muito diferente dos milhares de judeus crucificados pelos romanos. Se a Conferência Episcopal não percebe o que está por trás, por dentro, por fora e por baixo do que eu escrevo, o problema não é meu, é de quem não consegue ir mais além. Se eu fiz uma leitura superficial ou ingénua, eles estão instalados na exegese, da qual não querem sair.

Na epígrafe de As Intermitência da Morte escreveu: "Sabemos cada vez menos o que é um ser humano". Este é o grande tema dos seus últimos livros?

É que não há nada mais: o valor do ser humano, da vida humana, cada um por si e por todos. É a primeira coisa que há que respeitar, reconhecer e valorizar. Temos de criar outro tipo de relações entre nós.

Só assim é possível encontrar uma nova Humanidade, que de certa forma também aborda neste livro?

Isso já foi tentado. Deus, descontente com a Humanidade, gerou um dilúvio. Mas o que se pretende? Acabar outra vez com a humanidade, criar outro Noé e voltar a povoar a terra? Ou, pelo contrário, acabar com a fome, dar condições de vida dignas e educação séria a toda a gente? Não nego que a Igreja tenha sido útil em alguns momentos. Mas é uma carga terrível que a Humanidade leva às costas.

A bondade pode ser a palavra-chave para o homem se reencontrar com a sua humanidade?

É algo que nós deveríamos reconsiderar. Digamos que a bondade tem má imprensa. Ninguém quer pensar nela, nem ser bom. E ser bom, na sua versão mais simples, é aquela recomendação moral que diz: não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti. É utilitário e egoísta, mas funciona. Há dias ouvi uma gravação minha em que dizia que se a alguém ocorrer fundar uma internacional da bondade eu inscrevo-me. Ela é fundamental, e eu coloco-a acima de qualquer atributo humano, incluindo a inteligência e a sensibilidade.

Imperativos literários

Numa passagem irónica de Caim, deus admite que possa haver no universo "uma outra força, diferente e mais poderosa que a sua". Essa força pode ser a literatura? Ela pode ser um elemento de mudança do mundo?

Até agora não mudou. Basta olhar para as grandes obras-primas do passado que influenciaram uma época ou um conjunto de pessoas, mas nunca conseguiram mudar o mundo. Para atingir esse objectivo, é preciso reduzir ou limitar o poder absoluto de certas forças muito materiais deste planeta. Veja o que se está a passar com a crise. Toda a gente pensava que ia ser o pretexto para uma reconversão moral, o que não se verificou. Brecht tinha razão quando escreveu: "Pior que assaltar um banco é fundar um banco". Estamos nas suas mãos, e o próprio Obama já percebeu que contra eles não se pode fazer nada.

Resta-nos alguma esperança? Este livro é um pouco pessimista...

Não é nada. O livro acaba com uma negação total. Caim nega tudo. Atreve-se a isso. Se essa é a minha posição pessoal? Sim. Nego muita coisa. Digo não muitas vezes.

Falava na força da literatura, porque ela parece dar-lhe energia para, por exemplo, estar três horas a dar autógrafos, mesmo estando fisicamente fragilizado.

Tive a sorte de escapar a uma doença gravíssima. Mas não recebi daí força. Talvez tenha recebido outra coisa: um certo sentimento de urgência, como se fosse um aviso.

Em que sentido?

Não estou obrigado, por nada que me seja exterior, a fazer isto ou aquilo. Qualquer livro que tenha escrito, e este é um deles, responde a algo que é importante para mim. A um imperativo. A figura de Caim não me apareceu de repente. Anda na minha cabeça há muito tempo. E quando às vezes se fala da minha produtividade nos últimos anos, eu respondo de uma maneira que a Pilar não gosta nada: uma vela nunca se apaga por esmorecimento contínuo. No último momento, como uma espécie de canto do cisne, a chama é mais alta, ilumina mais. Levanta-se, alarga-se e acaba. Mas o importante é que estamos vivos. E que já estou a escrever um novo livro.

Fonte: Jornal de Letras
21/10/2009