+A +/- -A
"Portugal e Brasil, desunião cultural"

José Saramago, escritor é poeta português de 62 anos, não hesitou em conceder esta entrevista à repór­ter Ana Maria F. de Carvalho, de Pau Brasil Antes, porém, sua mu­lher tentou inter­ferir, argumentan­do que sempre chegam meninas da França, Espa­nha, Itália e mes­mo do Brasil para pedir orientação para defesa de tese. Comigo a desculpa foi a mesma: "José Sara­mago está a escrever um livro e precisa terminá-lo". Retruquei dizendo que gostaria de fazer uma entrevista e que ocuparia do seu tempo somente meia hora. Então, tudo mudou: “uma entrevista, o José Saramago pode conceder, também ele não pode ficar todo o tempo tran­cado a escrever um romance…”

Era 11 de janeiro, um dia de muito frio em Lisboa. Caía sobre a cidade um nevoeiro tão espesso que mal se distinguiam os galhos secos das árvores e as pessoas caminhavam muito agasalhadas. Confundida entre elas, subi a um dos bairros mais antigos e mais bonitos de Lisboa e, na rua da Esperança, entre as muitas casas que datam do século XVI e XVII, encontrei a de José Saramago. Como bom português, recebeu-me como muita simpatia numa sala onde tudo é muito próprio dos eruditos europeus. Nas paredes, quadros a óleo e de­senhos; por todos os lados, objetos antigos de arte e numa mesinha entre dois grandes sofás, estão empilhados belíssimos cartões postais de todos os lugares do mundo. Saramago é apaixonado por música, especialmente por Mozart. No chão, um álbum das obras do compositor; no fundo da sala, uma grande mesa, com uma máqui­na de escrever e atrás dela uma imensa estante re­pleta de livros. Nesse ambiente, nossa conversa durou quase duas horas. O escritor conhece o Brasil e tem uma visão especialíssima so­bre seu país. Ao se referir, por exemplo, aos rios de Portu­gal – segundo ele, quase todos envenenados -, José Saramago demonstrou grande tristeza, sobretudo, quando fala do Almonda, hoje poluído e que passa na sua aldeia natal, Azinhaga. Em seu livro “Viagem a Portugal”, onde Saramago é um viajante que descobre nas aldeias, vilas e cidades os encantos do País, diz: “Desta ponte não fará o viajante, outro sermão aos peixes. O Almonda é um rio de águas mortas, vida, nele, só a da podridão. Em criança tomou banho neste pego…" "Hoje as águas estão envenenadas…” “Não veio o viajante para lamentar a morte dum rio, mas ele está morto, ao menos que isso se saiba”.

Atualmente, José Saramago dedica-se quase exclusivamente a escrever. O romance “Memorial do Convento “, editado no Brasil em 1983 pela Difel, praticamente o consagrou. Es­creveu também “Levantado do Chão” e o “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, igualmente editados no Brasil pela Difel.

Qual a sua reflexão sobre o ecológico e a sociedade portuguesa, já que Portugal parece ter desenvolvido pouco esta temática?

Há os que realmente têm se formado e constituído com o projeto de debater as questões ecológicas, mas penso que não há aqui uma ação realmente muito concerta­da e, sobretudo, muito eficaz nesse plano. Por outro lado, por parte das instâncias oficiais, digamos governo e autarquias locais, não têm havido grande atenção para essas questões, sobretudo porque a relativa carên­cia de riquezas naturais em Portugal faz con­siderar tudo quanto existe, para se aprovei­tar sem atender àquilo que se vai destruindo com este aproveitamento. Dos escassos bens naturais que temos, crescem de outra circuns­tância, é que em Portugal, nesta altura, há uma cultura, da qual nem poderíamos dizer que é uma cultura. Enfim, se assina que é uma cultu­ra do eucalipto que se faz com o fim de forne­cer celulose às fábricas, que depois produzem a chamada pasta de papel. O que acontece é que se trata de uma árvore que, segundo os entendi­dos, empobrece extraordinariamente os solos, que seca as terras.

Há incentivos das autoridades para essa plantação?

Há. Trata-se, de uma ação das multinacio­nais. Mas digamos que, no fundo, esta histó­ria, já nos é conhecida sobretudo nos países da América Latina, onde geralmente o que é, como já se sabe, uma maneira de coloni­zar, ou melhor uma maneira de fazer colo­nialismo, que é exportar para os países po­bres as indústrias poluentes e tudo quanto seja nocivo. Neste momento Portugal é pa­ra os grandes consórcios de celulose uma espé­cie de país do Terceiro Mundo, onde se plan­tam os eucaliptos necessários. Os eucaliptos que os outros países da Europa não querem, são plantados aqui e depois de se ter envene­nado as terras, empobrecido as fontes e os cursos d’água depois fabricam o papel que nós, por nossa vez vamos comprar. Como se sabe, é um fenômeno extremamente conhe­cido quanto à exploração dos países do Ter­ceiro Mundo.

Há contestação por parte da sociedade?

Digamos que a população não tem qual­quer consciência ecológica. Há alguns pequenos grupos, especialmente jovens, mas com pouca ação pública real e com outro aspecto: eles também se dividem, se fracionam por razões de ordem política e ideológica e entram em con­frontação. De uma certa visão das questões, pas­sa a depender de um ponto de vista ideológico, do qual essas mesmas questões são pensadas, es­tudadas e apreciadas, o que em regra geral con­duz à paralisia quase total de uma nação. Ironi­camente, esta terra, este país teve – e neste mo­mento não tem mas foi um dos raríssimos paí­ses do mundo, ao menos da Europa que chegou a ter, há muitos anos – aquilo que se deu o no­me de Ministério da Qualidade de Vida, que é uma coisa perfeitamente desejável e seria exce­lente que todos os países, todos os governos tivessem um órgão semelhante, que justamente se encarregasse de defender a nossa qualidade de vida. Quer dizer, simplesmente, em matéria de qualidade de vida, não sei que países terão uma qualidade de vida mais baixa que esta nossa aqui; portanto, naturalmente esse Ministério foi por mar, por razões de ordem política, por razões de ordem conjuntural.

Quer dizer, então, que essa plantação de eucaliptos é um dos grandes problemas ecoló­gicos que Portugal enfrenta hoje?

Sim, além de que, agora, a maior parte dos rios em Portugal estão desenganados. Ha rios, por exemplo, e basta dizer que o rio da minha infância, o rio onde tomei banho, que é um afluente do rio Tejo, o rio Almonda, está completamente envenenado. Praticamente 90% do curso está envenenado por causa também, das fábricas de papel. Fábricas de curtumes que despejam para os rios os produtos químicos. Então não há peixes., quer dizer, morrem os peixes, morre a vegetação, enfim, a fauna e a flora são liquidadas com as fábricas; são exter­minadas e este é apenas um caso, porque a maior parte dos rios em Portugal estão, senão mortos, moribundos e não morrem de morte natural, morrem porque são assassinados. Isso conscientemente do que lá está. O que lá está, digamos, em nome de uma coisa que se chama lucro fácil, lucro intermediado, sem se perce­ber que se está a destruir a casa dos nossos filhos, netos e bisnetos, aqueles que hão de vir e quando nascerem encontrarão o mundo como uma casa em ruínas. Mas a ganância é igual àquilo que se passa lá pela vossa terra como é o caso de Cubatão, Amazônia etc.

Sobre o problema do desarmamento nu­clear no mundo, o senhor poderia fazer uma análise?

Aquilo que me parece, no fundo, é o que tem de parecer a qualquer pessoa que conserve ainda o seu bom senso. Se todos os homens fossem sensatos ou se conservassem ainda um pouco desse bom senso, que parece ser um dos instrumentos da nossa vida, se deveria eliminar tudo quanto tivesse que ver com armamento nuclear. Mas também me parece que a questão do armamento nuclear, é apenas um aspecto de uma questão que é mais ampla e provavelmente é uma questão fundamentalmente de interesse que é o problema do armamento e do desarma­mento. Eu sei que uma bomba nuclear mata mil vezes mais que outro meio militar, enfim, que uma bala de espingarda ou uma bomba de canhão; tudo isto mata muito, mata pouco, mas mata. Claro que uma bomba nuclear pode destruir esta cidade em três ou quatro segundos; tem de se encontrar maneira de que essa bomba não seja lançada até mesmo que essa bomba não seja fabricada. Mas creio que em tudo isto há também um pouco de hipocrisia, porque é realmente grave matar um milhão de pessoas em três segundos, mas é igualmente grave matar esse milhão de pessoas em quatro ou em cinco meses com meios bélicos menos radicais. Então, a questão do desarmamento nuclear é apenas um aspecto do desarmamento do que pura e sim­plesmente usar armamentos, porque eu posso desencadear todas as ações a favor do desar­mamento nuclear, mas não posso parar aí, não posso dar-me por satisfeito. No dia em que as potências destruírem todo o seu arma­mento nuclear, continuarão a ter armamento para usar, capaz de exterminar de todas as maneiras essas populações. Então não é o desarmamento nuclear, é o desarmamento puro e simples.

De que maneira o senhor recebe informa­ções do Brasil?

Como acontece a todos os portugueses, o conhecimento do Brasil é reduzido, limitado, incompleto, insuficiente e tudo o mais. Os jornais brasileiros praticamente não são lidos aqui. Nós temos uma grande dificuldade de um lado e de outro, quer dizer, tanto do lado do Brasil, como de Portugal de saber o que se passa. Qualquer coisa que poderia ser realmente útil seria por exemplo, a televisão, uma vez que ... a questão dos jornais, porque têm que ser transportados, pagam portes de correio altíssi­mos e portanto chegariam aqui num preço incomportável. Como se vai pagar aqui um jornal diário brasileiro? Mas a verdade é que aqui em Portugal pelo menos, a televisão pode passar dois ou três meses ou mais, sem dar uma notícia do Brasil. Agora, se morre ou está para morrer um Tancredo Neves então aí temos algumas imagens sobre o assunto. Já da vida real, da vida cotidiana não há uma palavra.

O Brasil conseguiu um desenvolvimento tecnológico maior que Portugal; por outro lado, Portugal, intelectualmente, é mais avançado. Como vê o problema do desenvolvimento tecnológico e do intelectual?

A primeira coisa, é que não sei se realmente Portugal se desenvolveu mais no plano intelec­tual. Mas há dois aspectos que devem ser considerados: O primeiro é a grande dificuldade que há em comparar um país que se chama Brasil e um país que se chama Portugal. Este tem 10 milhões de habitantes e é um pequeno país com graves problemas de desenvolvimento e, na ausência do desenvolvimento, é um país com poucas riquezas naturais. O Brasil é justa­mente o contrário, é um gigante, é um país que tem riquezas naturais que praticamente estão a começar a ser agora exploradas. Quanto à questão da intelectualidade, e a mim não me parece que haja em Portugal mais e melhores intelectuais do que há no Brasil, onde conheço gente, digamos assim, da mais alta qualidade intelectual e não vou fazer comparações entre o que temos cá e o que vocês têm lá.

Por que motivo deixou de haver continui­dade na relação intelectual iniciada no século passado entre nossos países?

Essa é a nossa velha e triste questão. Eu diria que as relações que existem entre Portugal e o Brasil são relações estúpidas (talvez, esta expressão seja um pouco forte, mas eu a emprego) porque temos uma língua que é comum, temos uma cultura, que não sendo comum, é uma cultura de que ambos os países podem se alimentar, quer dizer, eu posso se realmente quiser, ler os autores brasileiros como qualquer coisa que também pertence a Portugal e, vice-versa, os brasileiros também podem ler autores portugueses como qualquer coisa que também lhes pertence, pelas razões que eu disse: uma delas é a língua, outra é a cultura. No caso dos Estados Unidos e a Ingla­terra se poderia dizer a mesma coisa, mas não se pode. Embora a língua seja a mesma, a cultura não é exatamente a mesma, uma vez que os Es­tados Unidos são um bocadinho para onde toda a gente foi para lá, irlandeses, italianos, japone­ses, chineses, mexicanos, tudo, tudo foi dar nos Estados Unidos. Então, há nos Estados Unidos uma cultura sui generis, que não tem parente, não há um parente. Se há culturas parentes, seriam justamente a cultura do Brasil e a de Portugal. Por isso é que digo que as relações são estúpidas, porque apesar disto, que é uma evidência que se mete pelos olhos dentro, não foi possível até hoje criar condições de relacio­namento contínuo, que não sejam puras. E às vezes vêm assim uma espécie de acesso de fe­bre em que, de repente, toda a gente em Portu­gal descobre o Brasil e toda a gente no Brasil descobre Portugal. Isso dura 15 dias, ou um mês, dois meses, três meses e volta tudo como dan­tes. Cada um a tratar de si próprio. Para mim isso é errado, repito, porque se nós considerás­semos cada uma das nossas duas culturas, se se considerasse a outra como sua complementar, como sua co-complementar, ver-nos-íamos muito mais enriquecidos, sobretudo porque há um espaço, na geo-estratégia cultural. Não quero dizer pertencermos um ao outro, mas no qual nós Brasil e nós Portugal devíamos ter um papel naquilo em que poderíamos chamar de Bacia Atlântica, uma vez que a partir da América Central, estão ali todos os países de fala hispâni­ca e de fala portuguesa. Do México até à Terra do Fogo, do outro lado da África, há países de fala portuguesa e de fala espanhola. Não são muitos e não têm grande peso, mas estão lá. Se Portugal e o Brasil e também a Espanha considerassem que o seu lugar cultural profun­do é este, o trabalho de aproximação entre as culturas ibéricas e ibero-americanas podia ter uma importância, a meu ver, decisiva como fator, não só de equilíbrio, mas também de independência, na disputa cultural.

Quais os escritores brasileiros mais lidos em Portugal?

Esse é outro drama. Porque houve aqui um momento, há 20 ou 30 anos, em que os portugueses conheciam bastante bem os es­critores brasileiros. Era portanto aquela gera­ção de que felizmente alguns estão vivos ainda; se contava, por exemplo, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, poetas, como Manuel Bandeira, Mário de Andrade; o caso de Drummond que ainda está vivo, o João Cabral de Melo Neto; enfim é gente que tem hoje, 70 ou 80 anos, ou que já morreu. Eles foram aqui muito lidos, muito estimados e muito admirados. Depois creio que houve grande influência no corte devido à ditadura no Brasil. De repente, introduziu-se uma espécie de hiato, de vácuo neste contato que existia e hoje conhecemos muito mal tudo o que se passa no Brasil. Eu posso dizer que conheço alguma coisa, mas não sou o exem­plo, porque estamos a falar das pessoas em Portugal e não desta pessoa; enfim conheço a Lygia Fagundes Teles, Ignácio de Loyola Brandão, Rubem Fonseca, Ricardo Ramos, filho do Graciliano Ramos, Antônio Callado. Mas enfim, tudo isto se insere nas tais relações estúpidas que existem entre nós. Existe também um problema realmente grave que é como se divulgam estes autores cá e como os daqui são divulgados lá. Esta é uma questão que neste momento é como se nem o leitor brasileiro acreditasse no autor português, nem o leitor português acreditasse no autor brasileiro. É como se, cada um de nós achasse que a literatura do outro lado não nos interessa, que não tem nada para nos dizer. Seria necessário por parte dos editores de um lado e de outro, um trabalho de promoção, um trabalho de divulgação, um investimento, se estivessem dispostos a gastar dinheiro para tornar conhecido, apreciar, discutir, criticar, examinar a produção de um lado e a produção do outro lado, no confronto das duas. Por outro lado, há uma coisa que se chama governo. Há o governo brasileiro, que na situação atual caminha para a democracia, e que fazem às vezes uns chamados acordos culturais, trocam umas condecorações um Cruzeiro do Sul para mim a Ordem de Santiago para si, fazemos uns discursos na altura das condecorações e depois tudo continua como era dantes. Esta é mais uma prova de que as relações são estúpidas, ... porque realmente, não são relações de culturas. São relações puramente políticas.

Quais os escritores portugueses que mais o influenciaram?

Eu vou dizer uma coisa que geralmente não se diz, mas vou dizer: Eu diria que não há escritores brasileiros portugueses que me tenham influenciado, o que não significa que não os tenha lido e que não os leia com toda atenção e com todo o cuidado. Entre mortos e vivos, aprendi com a lição deles, como qualquer um aprende, mas não em termos de influência. Pode tratar-se de aprendizagem, mas não de uma influência, se há uma influência, e aí é que eu queria chegar, está exatamente nos escri­tores portugueses do século XVII e do século XIX. Portanto são aqueles homens da era do barroco. Embora verdadeiramente, o que tem mais que ver com o estilo, com a linguagem do que evidentemente com os temas, há de fato um outro grande fundo que eu também não posso chamar de influência, mas de alimento, que é o grande fundo dentro da cultura Ibé­rica. Sou o menos francês dos autores atuais, todos eles são mais ou menos, ou franceses ou ingleses ou norte-americanos, más não quero dizer que sejam todos. Para mim o lugar onde eu me alimento realmente em termos cultu­rais é de fato a Península Ibérica. E com a preo­cupação que já disse antes, com os prolonga­mentos dessa mesma cultura Ibérica – Espanhola e portuguesa, com os prolongamentos dessas mesmas culturas que se estenderam pelo mun­do, passando pelo Brasil, pela América Hispâ­nica, pela África. Esse a meu ver, é a minha seara onde corto o meu pão.

E Fernando Pessoa? Fale-nos sobre ele.

Do Fernando Pessoa ou se diz muito, com grande risco de cometer erros, porque não se pode simplificar e há geralmente essa tentação, essa tendência de simplificar toda a questão do Fernando Pessoa à volta da questão dos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiros tudo isso,e a questão é muito mais com­plicada. Portanto, ou se diz muito, porque não se pode dizer pouco ou então o melhor é dizer quase nada e o quase nada pode talvez resumir-se desta maneira: o Fernando Pessoa é evidente­mente o maior escritor português deste século e é, pode-se considerar assim, um dos grandes poetas universais do século XX. Mas o que é estranho, é que é um grande poeta de quem os outros poetas não se atrevem a continuar, praticamente não há imitadores. A dimensão dele é de tal ordem que não fez epígonos, que não fez sequazes, que não fez imitadores, que não fez continuadores. É claro que o Fernando Pessoa não pode se dissociar do modernismo em Portugal, porque é aí que ele está, e é aí que ele ganha a grande dimensão que veio a obter. Só que cresceu de tal maneira, de tal forma, um gigante que ninguém se atreve a segui-lo ou imitá-lo, porque é demasiado óbvio e é como se ninguém se atrevesse a escrever a Fernando Pessoa. Então ele é, ao mesmo tempo, alguém que muito se admira, mas é alguém que não pode ser mestre porque o discípulo não quer parecer-se com o mestre, enquanto que a regra, os mestres fazem discípulos à sua imagem. Neste caso são os discípulos que não querem ter sobre os ombros a grande responsabilidade de parecer-se com o mestre.

O senhor vê Jorge Luís Borges como o melhor escritor da atualidade?

Jorge Luís Borges é com certeza um grande escritor. É um dos maiores escritores deste nosso tempo. Mas quando me perguntam se A, B, ou C são os melhores, eu em geral digo isto: vamos imaginar que vamos escolher uma publicação lá no Brasil ou os cem melhores poetas brasileiros. Mas o que quer dizer os cem melhores poetas brasileiros? O centésimo já está quase a deixar de ser o melhor, o centésimo primeiro é tão diferente ou é tão menos bom que não pode ficar em vez dos cem melhores poetas brasileiros entre os cento e um melhores poetas brasileiros? Quer dizer, aparte de arbítrio que há nesta classificação, quem é melhor, quem é pior é falível além de ser preciso conhecer todos, para dizer qual é o melhor. Há realmente uma diferença porque escrevem mal, porque não sabem transmitir aquilo que querem dizer, ao passo que os bons sabem tudo isso. Agora dizer entre os bons, quais são os melhores, ou qual é o melhor de todos, não vale a pena. Ou melhor ainda, se o Prêmio Nobel é atribuído ao melhor escritor que se tem a cada ano, quando nós vemos alguns dos nomes a quem o Prêmio Nobel foi atribuído, temos o direito de achar, que afinal de contas o critério sobre o que seja o melhor é das Coisas mais falíveis do mundo; E a prova é que o Jorge Luís Borges sendo, como é, um grande escritor e um grande espírito, não teve nem vai ter, provavelmente nunca, o Prêmio Nobel. Pode ser até que o próximo seja para o Jorge Amado e considero pessoalmente que : Jorge Amado merecia com toda a justiça a atribuição do Prêmio Nobel, mas também pode-se dizer que a glória do Jorge Amado já dispensa o prêmio, mas se o Prêmio Nobel é uma consagração, penso que Jorge Amado tem direito a essa consagração.

Como o senhor vê Portugal hoje? ou melhor Portugal pós-revolução?

Como geralmente se podem ver os países e os povos depois de uma revolução. As revoluções são sempre uma grande esperança e o depois das revoluções geralmente não confirmam essa espe­rança. De qualquer forma, sempre se ganha e no nosso caso ganhamos a liberdade, ganhamos a democracia, ganhamos a liberdade de comunica­ção, de reunião, de expressão. Então, pode-se dizer que em muitos aspectos, embora não tivesse satisfeito todas as esperanças e todas as expectativas, se há alguma revolução que valeu a pena, foi justamente este 25 de abril. Nós vivemos nesta altura, um momento mau, uma época má em que há um certo desânimo, um certo desalento por parte, justamente, digamos, de um povo que não viu fazer-se aquilo que lhe disseram que era possível.

Mas as mudanças sempre são muito difíceis.

Pois é, as mudanças são difíceis porque quando se muda há o momento perfeito que é o momento em que a mudança se vai fazer, em que a mudança se anuncia, então é o momento em que a felicidade existe. Há o momento em todas as revoluções que se pode dizer que este povo é feliz neste momento. Quando o povo brasileiro desencadeou o processo das manifes­tações pelas diretas-já, houve realmente um levantamento, praticamente de um país inteiro, que atingiu uma espécie de “estado de graça”. Depois, entra-se na prática da democracia e cai-se na velha realidade e elege-se um Jânio Quadros para São Paulo porque todo o processo é um processo de avanço e recuo; porque nem toda a gente quer avançar da mesma maneira; porque nem toda a gente quer avançar no mesmo sentido.

As pessoas mais conservadoras, principal­mente, reclamam muito deste período de transição e dizem que em outros tempos tudo era mais seguro, mais organizado, mais limpo e hoje tudo parece uma baderna.

Pois, antigamente não era assim, mas se esse argumento pudesse ser aceito tínhamos de ir até antes do próprio Salazar, porque houve momen­tos anteriores, digamos na história recente em que também não existiam ladrões, em que as cidades estavam limpas, enfim, tudo isto existia. No fundo, o que isto quer dizer é que as pessoas têm necessidade de estabilidade, de segurança, de serenidade. Agora, os processos sociais têm a sua lógica própria e não podemos, e não devemos computar essa relação a eles como quem se comporta, por exemplo, diante de um copo de leite que entornou. O apelo à disciplina, o apelo à segurança pode vir de dois pontos completamente opostos: o da direita, que realmente cultiva o discurso da ordem, o discurso da segurança, o discurso da disciplina, o discurso da tradição; e o da esquerda, quando esta perceber que não há incompatibilidade entre o processo social de esquerda e esta mesma segurança e esta mesma estabilidade. ... O equívoco que muitas vezes se estabelece é que a esquerda tem de reconhecer a liberdade, tem de reconhecê-la, respeitá-la e não atentar contra ela. Mas entra numa espécie de situação de má consciência, o que vem a ser, não atua contra os atentados à liberdade, para defender essa mesma liberdade. Portanto, há um mau entendimento do que seja defender a liberdade. A liberdade deve ser defendida contra os pró­prios sucessos da liberdade. Claro que se pode perguntar, mas quem é que vai decidir sobre aquilo que é legítimo e o que não é legítimo? Diria o que pode decidir é justamente o consen­so de uma população, de uma certa sociedade, que vive de uma certa maneira e cuja segurança ou cuja vida, ou cujos bens podem estar em perigo, ou não estar em perigo. Esse, digamos, é o consenso. Então aí atua-se contra quem ofenda a liberdade porque é necessário realmente defender a liberdade. A minha liberdade não pode ofender a liberdade do outro, esta é a questão. A esquerda tem de entender isto, a minha liberdade é intocável, ninguém pode atentar contra a minha liberdade, mas a minha liberdade não pode atentar contra ninguém. Agora, quando em nome do discurso da ordem, do Jânio Quadros, do Salazar e não estou a fazer comparações entre os dois, quando é à ordem pela ordem, quando é imposta por uma autori­dade, em vez de ser o reconhecimento dos interesses múltiplos, das necessidades múltiplas e dos direitos múltiplos, isso pode ser também ordem. Porque é a ordem que permite a minha relação com os outros, ou melhor, a minha relação em liberdade com os outros.

O que o senhor acha da idéia de se lançar uma revista como a Pau Brasil?

Eu acho excelente, eu já a li, não li todas, mas li os dois números que vocês me mandaram de lá. É inclusive, muito interessante até aqui para nós. Até estou a pensar na medida em que isso seja possível certos artigos de caráter mais geral, dá-los aqui a uma e outra revista. Digamos, fazer um intercâmbio múltiplo, penso realmente que isso pode ser útil. Agora, eu não sei como vocês conseguem ter uma revista destas dentro de uma instituição de governo e isso é que é notável.



Nota: Alguns trechos da entrevista - curtas frases - estão substituídas por reticências; é o artigo original já apresentava problemas.

Fonte: Revista Pau Brasil
11/01/1986